A dependência química é uma doença que acompanha a Anestesiologia desde seus primórdios. Muitos dos pioneiros da especialidade experimentaram anestésicos em si próprios, e alguns sofreram terríveis consequências e até desfechos trágicos. A maioria dos fármacos que surgem e juntam-se ao arsenal da especialidade tem potencial risco de abuso por parte dos médicos. E, em especial, são os anestesiologistas, que tem maior acesso a essas drogas.
Diferente dos outros médicos que não administram diretamente as medicações que prescrevem, o anestesiologista tem acesso, manipula e administra diariamente drogas muito potentes e dependógenas. Além disso, o abuso de substâncias está associado a diversos fatores predisponentes cotidianamente presentes na vida do especialista: alta carga de trabalho, pressão por desempenho, estresse, esgotamento psicológico (Síndrome de Burnout), transtornos psiquiátricos prévios, enfim, a dependência química em anestesiologistas é uma doença de etiologia multifatorial (tabela 1) e de difícil manejo.
O abuso de substâncias é definido como o uso repetido, excessivo ou impróprio de uma substância psicoativa com consequências negativas em uma ou mais áreas da vida que, por sua vez, pode evoluir para dependência química que é uma doença crônica que envolve circuitos cerebrais de recompensa, motivação e memória. A disfunção desses circuitos está relacionada a manifestações psicológicas, biológicas e sociais.
Essas alterações podem ser observadas num indivíduo procurando e usando substâncias patologicamente. A dependência química é caracterizada pela inabilidade em manter abstinência consistente, com comprometimento do comportamento de controle, compulsão (craving), diminuição do reconhecimento dos problemas relacionados ao uso, isolamento social, tolerância, síndrome de abstinência e resposta emocional disfuncional.
Diferente de outras drogas como o Álcool cuja dependência química geralmente ocorre após anos de abuso, a dependência química de opióides venosos como o Fentanil e Sufentanil ocorre rapidamente, por isso é muito comum que os dois termos sejam utilizados com o mesmo sentido. Tanto o abuso quanto a dependência química são tipos de ‘Transtornos relacionados a substâncias’ (DSM-51) ou, em inglês, Substance Use Disorder (SUD).
É particularmente preocupante o abuso de opióides em anestesiologistas, especialmente o Fentanil, que vem sendo descrito há décadas no mundo todo. No entanto, diversos estudos têm relatado um recente e alarmante aumento na incidência de abuso de outros anestésicos como: Propofol, Cetamina e os Inalatórios, que estão associados a altas taxas de mortalidade.
O Fentanil (e seus derivados) é responsável por uma parcela significativa das admissões em programas de tratamento nos Estados Unidos para médicos anestesiologistas, e é mais observado em residentes e anestesiologistas recém formados, embora possa ocorrer em qualquer faixa etária. O abuso de opióides por via venosa geralmente leva à dependência química rapidamente, com perda completa do controle sobre o consumo, sendo comum a alta tolerância que leva o médico a injetar doses cada vez maiores e o desenvolvimento de Síndrome de Abstinência bastante desconfortável, que muitas vezes, leva a uma nova aplicação para aliviar os sintomas.
A Síndrome de Abstinência de opióides geralmente começa entre 6 a 12 horas após o último uso e o pico se dá entre 24 a 72 horas, durando cerca de uma semana. Os primeiros sintomas são inquietude, irritabilidade e fissura (craving). Após 12 horas são comuns bocejos, lacrimejamento e sudorese. No pico há intensificação desses sintomas, somados à piloeração, tremores, ondas de calor, frio e dores musculares.
Depois de 24 a 36 horas, comumente observa-se insônia, náuseas e vômitos, hipertensão arterial, taquicardia, perda de peso, entre outros. Esses sintomas vão diminuindo de intensidade até cessarem. É importante ressaltar que a “fissura” (craving), compulsão forte por usar, geralmente ocorre durante todo o período, sendo que o consumo geralmente alivia os sintomas, o que impede que a abstinência seja sustentada na maioria dos casos.
1 – DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5a edição (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders)
Apesar de mudanças comportamentais serem os indicadores mais comuns, alterações evidentes geralmente se apresentam quando a doença está em estágio avançado. Para evitar consequencias trágicas é importante que todos os anestesiologistas estejam atentos a sinais que podem ser indícios do abuso como labilidade emocional, aumento excessivo da carga de trabalho, preferência em trabalhar sozinho e fora do Centro Cirúrgico, idas frequentes ao banheiro, uso de mangas compridas, entre outros (tabela 2).
Reconhecer esses e outros sinais, ou índícios, pode fazer a diferença antes que seja tarde. Assim como intervir o mais rápido possível, mas de forma acolhedora e não julgadora. Não é fácil abordar o colega, mas é preciso ter em mente, que isso pode prevenir desfechos trágicos. É comum que ele negue o uso, o que faz parte da doença. Provavelmente o colega está amedrontado, com a vida pessoal e social comprometida e a profissão pode ser a última coisa que mantém o significado de sua vida.
Essa atitude de negação pode dificultar contato empático, mas manter atitude não confrontativa resulta em intervenções mais eficazes. Aliás, devem ser feitas com cuidado, e não por “conversas de corredor”. Deve-se mostrar as evidências do ato e elaborar um plano de ação em que o médico em questão tenha apoio da instituição e dos colegas para se tratar.
O afastamento do Centro Cirúrgico é muito mais uma atitude protetora do que punitiva. E o tratamento idealmente deve ser feito com Psiquiatras e Psicólogos especialistas em dependência química. Casos mais graves geralmente beneficiam-se de internação seguida de acompanhamento ambulatorial. A recuperação é um processo longo, provavelmente um compromisso para toda a vida, já que dependência química é uma doença crônica.
É possível que o anestesiologista retorne à prática anestésica, o que deve ser cuidadosamente analisado caso a caso, por profissionais com experiência na área (psiquiatras e psicólogos), após comprovação de abstinência sustentada por testes toxicológicos (cabelo). A reentrada deve ser gradual e com apoio dos demais profissionais. O manuseio supervisionado de antagonistas, como o Naltrexone, tem se mostrado um fator protetor, já que há risco de recaída e até mesmo índice de mortalidade significativo. Em alguns casos, a mudança de especialidade, ou até mesmo profissão, são recomendáveis.
A alta mortalidade relacionada tanto ao abuso de substâncias, quanto ao suicídio, se mantém uma realidade difícil, mas espera-se que com a maior conscientização, educação e a melhoria do manejo dos casos, aqueles que sofrem com a dependência química possam retomar um certo equilíbrio e voltem a ser produtivos e ter uma vida satisfatória e plena.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Barash’s Clinical Anesthesia, 8th edition (2017).
- Figlie NB, Bordin S, Laranjeira R. Aconselhamento em Dependência Química, 3 ed – São Paulo: Roca, 2015.
- Mayall RM et al. Substance abuse in anaesthetists. BJA education, 16(7): 236-241 (2016)
- Miller’s Anesthesia, 9th edition (2020).