A medicina moderna permite que um número significativo de enfermidades possam ser curadas ou controladas. A morte deixou de ser evento comum, presente na vida cotidiana das pessoas e passou a ser institucionalizada, merecendo destaque a criação das unidades de terapia intensiva e a medicina de urgência que têm papel preponderante e impactante na maneira como o processo da morte é vivenciado. Neste contexto surge a medicina paliativa que tem como foco a oferta de controle de sintomas associados ao adoecimento com risco de morte.
O Rei do futebol, Pelé, internado desde a última terça-feira (29), em São Paulo, passou a receber Cuidados Paliativos na última semana pela equipe médica do Hospital Israelita Albert Einstein. Ser um paciente em Cuidados Paliativos não representa, necessariamente, o atendimento ao paciente em seus derradeiros momentos, quando, na realidade, este tipo de assistência é oferecido com a intenção de melhorar a qualidade de vida do enfermo e de sua família, com métodos não invasivos de tratamento. O significado desse tipo de atenção ora recebida por Pelé é que seu tratamento passa a ter como principal objetivo o alívio de seu sofrimento face a uma enfermidade que não mais pode ser considerada alvo de terapias curativas.
Os Cuidados Paliativos dentro movimento “hospice” moderno, inicialmente proposto por Cicely Sounder, retoma os valores iniciais da prática médica em que o doente passa a ser visto como um todo. A sua prática requer a existência de equipe multidisciplinar e, diante de uma doença que ameace a vida e tenha poucas - ou nulas - possibilidades de cura, como é o caso de Pelé, os paliativistas entram em cena e protagonizam o cuidado com objetivo de prover conforto e de “aliviar as dores e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”, como definido pela Organização Mundial da Saúde.
O ex-jogador trava uma batalha contra o câncer de cólon diagnosticado no ano passado, e hoje apresenta metástases no intestino, pulmão e fígado. O tratamento a partir de agora não contará mais com quimioterapia, por exemplo, reforçando a informação que a intenção dos Cuidados Paliativos não é aumentar a expectativa de vida do paciente, mas focar no bem-estar. Apesar de não ter este objetivo de prolongar a vida, os Cuidados Paliativos, quando precocemente estabelecidos, contribui para que seu estado físico do enfermo se preserve por mais tempo e, assim, este tolere as intervenções terapêuticas propostas para a sua doença de melhor maneira. Desta forma, apesar de a princípio, não se mostrar como objetivo dos cuidados paliativos, estes resultam em maior expectativa de vida.
A graduação médica, e por que não dizer em outras profissões da área da saúde, já nos instrumentaliza com todos os conhecimentos necessários à prática dos Cuidados Paliativos. Afinal, saber tratar os sintomas físicos mais prevalentes na terminalidade, como constipação, dor, dispneia, entre outros desconfortos, não pode ser de responsabilidade exclusiva de especialistas. Apenas o enfoque, a maneira com que o paciente e sua enfermidade são encarados, é que deve ser mudado.
Os anestesiologistas brasileiros foram uma das primeiras especialidades em nossa realidade a ofertarem Cuidados Paliativos. Isso se deve ao fato de que, quando da criação da Área de Atuação em Dor sermos praticamente os únicos especialistas a atenderem os pacientes portadores de enfermidades ameaçadoras da vida. Afinal, a dor é um dos sintomas mais prevalentes nessa população e um dos que mais tem impacto negativo na qualidade de vida. Nada mais justo que, quando da criação da Área de Atuação em Medicina Paliativa, os anestesiologistas estivessem contemplados entre as especialidades aptas a exercerem a função.
Estar em Cuidados Paliativos não é ter uma sentença assinada. Conhecemos casos de pacientes que estão em Cuidados Paliativos há anos e dia a dia enfrentam com dignidade suas enfermidades. Os paliativistas são essenciais durante a fase de adoecimento, e ajudam em grande medida a atenuar todos os sofrimentos e dores de pacientes e suas famílias.
Todos inevitavelmente um dia nos confrontaremos com a morte. Quanto este momento difícil chegar aos nossos pacientes devemos nos questionar se estamos oferecendo aquilo que eles gostariam de receber, assim como se estamos dando a eles a oportunidade de serem ouvidos da mesma forma que gostaríamos de sermos ouvidos quando chegar a nossa vez de sermos cuidados. Cuidados paliativos são terapias de relativo baixo custo e complexidade que resultam em um enorme benefício na qualidade de vida do indivíduo e de seus familiares.
Por Dr. Guilherme Antônio Moreira de Barros (vice-diretor de Relações Internacionais)